Quando digo que sou tradutora, Ă© frequente ouvir a resposta âAh, ok. Boa.â. A segunda alternativa, igualmente frequente, Ă© âAh, fazes tradução de filme e sĂ©ries, Ă© isso?â. NĂŁo, nĂŁo Ă©. Se bem que a legendagem estĂĄ muito presente no nosso dia a dia, de forma muito visĂvel, entre sĂ©ries e filmes consumidos diariamente, reportagens, clips, documentĂĄrios e todo um catĂĄlogo de consumo audiovisual em plataformas de streaming onde, na sua maioria, temos produtos com legendas, a tradução nĂŁo se resume apenas a esse nicho de mercado. Hoje, contudo gostaria de vos falar sobre interpretação, um ramo completamente diferente da tradução.
Se, em traços gerais, a tradução Ă© a passagem de um texto escrito numa lĂngua para outra lĂngua utilizando palavras equivalentes, atravĂ©s de um meio escrito, a legendagem faz o mesmo com um meio audiovisual e a interpretação utiliza um meio oral. Para alĂ©m disso, requer tambĂ©m uma panĂłplia de conhecimentos e tĂ©cnicas inteiramente diferentes que tĂȘm de ser aprendidos e treinados.
Tal como hĂĄ diferentes tipos de tradução (tĂ©cnica, literĂĄria, jurĂdica, mĂ©dica,âŠ), existem tambĂ©m diferentes tipos de interpretação: simultĂąnea, consecutiva, de murmĂșrio, entre outras. A minha experiĂȘncia profissional, se bem que assente primeiramente na tradução tĂ©cnica, tem-se alargado nos Ășltimos anos para incluir tambĂ©m a interpretação, mais especificamente para a tradução simultĂąnea.
A interpretação simultĂąnea nĂŁo Ă© apenas âdizer o que uma pessoa disse, mas noutra lĂnguaâ; Ă©, sim, fazĂȘ-lo ao mesmo tempo que o orador estĂĄ a falar. Com recurso a material ĂĄudio, como auscultadores, auriculares ou microfone, os ouvintes podem escolher ouvir o orador ou o intĂ©rprete a comunicar.
Nem sempre me Ă© fĂĄcil explicar, a quem nĂŁo conhece a ĂĄrea, o quĂŁo complexo Ă© este processo de ârepetir o que uma pessoa diz mas noutra lĂnguaâ. De forma simples, o intĂ©rprete tem de:
â ouvir o orador
â compreender o que estĂĄ a ser dito
â traduzir mentalmente o discurso em causa
â falar /dizer a tradução equivalente
â ouvir-se a si mesmo enquanto fala
â continuar a ouvir o orador para continuar a traduzir e interpretação oral.
Parece confuso? E Ă©. Estamos, na sua essĂȘncia, a falar por cima de outro falante, a comunicar ao mesmo tempo que outra pessoa, mas numa lĂngua diferente. E sĂł o intĂ©rprete Ă© que ouve as duas comunicaçÔes, jĂĄ que os ouvintes escolhem um dos meios orais, ou o original do orador ou a tradução realizada pelo intĂ©rprete.
O cérebro ainda estå acelerado, habitou-se a trabalhar a 100 à hora para processar a informação que estå a receber e a traduzir para a comunicar a terceiros, a procurar mentalmente equivalentes de palavras, a ter a certeza de que os tempos verbais que estou a usar façam sentido numa frase que ainda não sei como irå terminar, a tentar não falar muito depressa mas também não muito devagar, a usar um tom de voz mais grave mas sem ser maçador ou monótono⊠todos os conhecimentos e técnicas estão a ser postos em pråtica ao mesmo tempo.
âCair da boca aos cĂŁesâ, âter a cabeça em ĂĄguaâ, âter a cabeça feita num oitoâ,⊠a riqueza da nossa linguagem apenas âtraduzâ em parte o sentimento que se tem quando se acaba um serviço de interpretação, quando ainda estou a tentar abrandar, a recuperar a velocidade ânormalâ da vida. E a preparar-me para o prĂłximo!
Sara Pereira, tradutora, revisora e gestora de projeto